Governos existem
para controlar as circunstâncias, não para ser controlados por elas; governos existem para irem adiante,
e não atrás dos
acontecimentos; governos
existem para cercar as margens de erro, antecipando-se aos problemas, não para elaborar desculpas
implausíveis; governos existem
para informar-se sobre o futuro e as consequências dos seus atos - não com bola de cristal, mas com os dados objetivos fornecidos
pela realidade -, não
para confundir a embromação com o otimismo.
Isso tudo é querer demais? Pode ser. Mas, digamos nosso
problema principal não é o tamanho do superávit primário, a seca que vai
subtrair água e energia, o tapering do Banco Central dos EUA ou as matérias de
duvidosa qualidade da The Economist e do Financial Time, mais alarmistas que o
devido. A questão essencial no Brasil de hoje é outra: a excessiva distância
entre o que o governo deveria ser e o que é. Essa distância, que não para de se
ampliar, é o nosso problema número um.
Estamos colhendo, literalmente, o que temos plantado. Quando
plantamos direito - caso do agronegócio, que tem livrado o Brasil de um vexame
na balança comercial dos últimos anos -, colhemos bons frutos. Quando plantamos o
erro, o que se colhe é... Uma safra de erros.
O déficit em conta
corrente do balanço de pagamentos, problema n.º 1 da economia brasileira, que a
torna tão vulnerável às apostas do mercado financeiro internacional, tem como
causa principal o déficit comercial do setor industrial, que no ano passado foi
de espantosos US$ 105 bilhões. Essa situação resultou de uma escolha da
política econômica lulista, muito especialmente a partir da crise internacional
de 2008/2009.
Aqui e ali, multiplicam-se as críticas sobre a perversidade
do farto financiamento do BNDES a alguns setores da indústria, algumas
fundadas, outras nem tanto - e não vou entrar no mérito neste texto, a merecer
outro artigo. Ou, ainda, há quem atribua isso ao "fechamento da
economia", embora ela não pare de se abrir. A questão essencial, porém, é
outra. O governo brasileiro assiste inerme a um
processo de desindustrialização - a grande marca do governo Lula - que cobra um
preço social altíssimo no médio e no longo prazos, já que é o setor que paga os
melhores salários e que força com mais velocidade a especialização da mão de obra.
A escolha dos
governos do PT foi torrar o dinheiro proveniente tanto dos altos preços das
nossas exportações de produtos agro minerais como da abundância de capital
externo barato. Como mencionou o professor Edmar Bacha, entre 2004 e 2011,
tivemos uma farra econômica no Brasil: nada mais nada menos do que 25% do
aumento do gasto doméstico foi financiado por esses dólares. Tudo para consumir
e substituir produção doméstica. Pouco ou nada para fortalecer a
competitividade da economia, elevando os investimentos públicos e privados e a
oferta de bons empregos. Tudo para elevar a carga tributária que sufoca a
produção e castiga proporcionalmente mais os setores sociais de menores rendas,
via tributação indireta. Pouco ou nada para dar sustentação permanente à elevação
do padrão de vida.
Pior ainda. O governo fez o possível para
atrapalhar a Petrobrás, atrasar os investimentos em novos campos, travar as
concessões de estradas, dentro de sua ideologia mais profunda: transformar
facilidades em dificuldades. Isso nos privou de um precioso vetor de
crescimento da economia, pelo lado da demanda e da produtividade.
A despeito das fanfarronices sobre a suposta agilidade do
Brasil nos negócios externos, a verdade é que, das grandes economias, o Brasil é o único
que não celebrou pactos comerciais bilaterais. Foram centenas no mundo nos
últimos dez anos. O Brasil firmou só três: com Israel, Palestina e Egito... Ao
contrário: continua amarrado ao Mercosul - o maior erro cometido pelo Itamaraty
na sua história moderna, reiterado por cinco governos diferentes. E vejam bem:
o estorvo essencial do Mercosul não vem dos Kirchners. É fruto da estultice da
ideia de fazer dele uma união alfandegária, que suprimiu a soberania comercial
no Brasil. Se, por exemplo, fizéssemos um acordo comercial com a Índia, seria
preciso que todos os outros parceiros fizessem parte também... O País não se
pode dar o luxo de acumular sucessivos, crescentes e escandalosos déficits na
indústria sem considerar que está, obviamente, com problema.
Nada é tão deletério para nós, no que concerne ao futuro,
como os erros de análise de perspectiva do governo brasileiro no que diz
respeito ao cenário internacional. Tome-se
o caso do atual estresse envolvendo a fuga de investidores - os de curto prazo
- para EUA e Europa em razão da retomada do crescimento dessas economias: mais
forte a americana; ainda modesta, na média, na zona do euro. Chega a parecer
piada, mas é verdade: não faz tempo se falava por aqui numa verdadeira
"guerra cambial" em razão da enxurrada de dólares que os EUA
injetaram na sua economia. Foi uma gritaria danada. Agora que começa o
movimento contrário e os dólares estão vindo menos, em vez de chegarem mais,
ouve-se o mesmo alarido. Nos dois casos, há uma tendência de culpar os países
ricos, mas a fragilização da nossa economia, tornando-a mais suscetível aos
ataques especulativos no âmbito do sistema financeiro internacional, foi
precisamente obra do governo Lula-Dilma.
Poderíamos
ter-nos protegido dessa volatilidade? Se o ambiente fosse, por exemplo, mais
favorável aos investimentos, em vez de o Brasil estar agora lamentando a
retomada da economia americana e a melhora na zona do euro estaria comemorando.
E por dois motivos: porque investimentos realmente produtivos não fogem do País
da noite para o dia e porque, tivesse uma indústria mais competitiva, estaria
se preparando para disputar mercado. Ocorre
que essas coisas não se fazem assim, no improviso, da noite para o dia. No fim
das contas, é a incapacidade de planejar, ditada por uma leitura capenga do que
vai pelo mundo, que nos leva a esse modelo que vai da mão para a boca.
JOSÉ SERRA - O Estado de São Paulo, 13 de fevereiro de 2014.
Editado por Edison
Franco.
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